quinta-feira, 21 de agosto de 2008

ALAMEDA DOS POETAS


MANDE LEMBRANÇAS PARA MAXWELL



Sou um velho de 70 anos. Por que estou dizendo isto? Porque é assim que as pessoas me vêem. Embora eu não me sinta como tal.
Lembro-me que tenho uma aparência desgastada pelo tempo, apenas quando me olho no espelho. Aí sim, vejo aquelas manchinhas na pele – quase imperceptíveis, é verdade, mas que existem -, vejo bolsinhas abaixo dos olhos, rugas na testa, alguma flacidez nas faces e no pescoço. Os cabelos são ralos e brancos, assim como a barba de três dias.
Nesse momento, estou na varanda de minha casa, sentado à mesa do café da manhã, posta com o esmero e o capricho de sempre por Consuelo, a dedicada doméstica que me presta os seus serviços há mais de vinte anos.
Todas as manhãs, ela me serve o café na varanda, e me traz os jornais. Ela diz que faz bem para a minha saúde contemplar a natureza, ou seja: o pequeno jardim de minha casa que tem o nome de minha mãe: Isadora.
Eu poderia saber das notícias do dia pela Internet, confesso, porém, que até hoje, não me habituei a essa, digamos, comodidade.
Olho de repente para o lado e eis que deparo com a agradável presença de Mirtus, o único amigo que me resta. Ele se aproxima, com aquele seu andar insolente, os olhos sempre voltados para o chão e as mãos escondidas nos bolsos da calça. Louvo a Deus, todos os dias, pelo fato de Mirtus pertencer à espécie humana, porque, na realidade, um homem compreende que seu fim está próximo, quando percebe que seu único amigo é um animal.
Mirtus, de fato, é um amigo. E um amigo de longa data. Professor de Geografia, aposentado. Era para se chamar, na verdade, Milton. Mas teve que pagar pelo pecado de se chamar Mirtus, a vida inteira, por causa da pronúncia errada de seu pai, um ex-lavrador.
Mirtus e eu estudamos juntos e, enquanto adolescentes, sonhamos juntos, vibramos, vencemos e perdemos, sempre juntos. E, enquanto jovens, rimos e choramos, do mesmo modo. E finalmente... Bem, não houve finalmente.
Depois, cada um foi para o seu lado, e a vida nos colocou novamente juntos, depois de um longo, longo tempo. Não sei porque, mas eu já suspeitava que seria assim. Talvez, devido o meu dom de atrair encrenca para o meu lado.
Há alguns meses, nenhuma tentadora estória povoa a minha mente, impelindo-me a colocá-la no papel. Acho, como diria Hemingway, que “não funciona mais”.
Dia desses, Mirtus e eu, listamos nossas referências de vida, e percebemos que todos já se foram. Sortudos. Jorge Amado, Darci Ribeiro, Vilas Boas, Glauber, Tom, Vinicius, Graciliano, Érico... De maneira que ficamos como que órfãos.
Daqui a pouco vou me levantar para tratar dos periquitos australianos, ouvindo Mirtus me questionar pela milionésima vez por que não os solto.
Ele não entenderia, certamente, se eu lhe dissesse que, da convivência com os pássaros tiro um pouco do entusiasmo que me resta para viver; e outro pouco tiro dos livros da minha biblioteca; e finalmente, dos textos inacabados, os romances que acabam virando contos de quinta categoria, não me eximindo de um esforço, às vezes, desumano, por torná-los ao menos aceitáveis a um leitor menos exigente, que busca apenas entretenimento. Afinal, para que serve a literatura?
Eu me distanciei dos meus irmãos, por opção. Michele, minha filha, depois que se formou, casou-se com o primeiro bonitão bom de papo e de carteira cheia que encontrou. Três vezes, durante o ano, ela vem me visitar. Dez de fevereiro, segundo domingo de agosto, e 25 de dezembro. A primeira data, a do meu aniversário; as demais, por força da tradição. Eu a compreendo. Convivência, pouco tivemos. Mas, desde que me separei de sua mãe, nunca senti Michele tão distante de mim. Carmem, sua mãe, hoje uma senhora enxuta, de 59 anos, vive muito bem, obrigado, com o seu segundo marido. Às vezes nos falamos ao telefone. Antigamente, com muito mais freqüência. Michele era criança, depois adolescente; depois, jovem sonhadora; hoje, uma mulher formada, amadurecida, mãe e esposa. Por isso, eu e Carmem, apenas nos falamos, quando ela se sente só e quando quer reclamar do marido ciumento. Adoro quando ela diz: “Querido, você não era assim!”.
Muito bem, naquela manhã primaveril, estava eu lendo o jornal, enquanto, pacientemente, ouvia o meu bom, fiel e dedicado amigo, Mirtus, narrar mais um dos seus grandes e eloqüentes sonhos, momento em que, uma bola, vinda da rua, caiu no jardim de minha casa, exatamente sobre a roseira que eu mais estimava.
Não tardou para alguém tocar a campainha. Mais do que depressa Consuelo se dignou atender. Mas eu a impedi, dizendo que eu mesmo o faria. Com a bola na mão, dirigi-me ao portão de casa, acreditando ser o dono do mundo e da verdade.
“O senhor, poderia, por favor, devolver-me a bola?”. – disse o garoto, que, para os meus olhos, era exatamente eu, quando tinha 11 anos.
Após fazê-lo, voltei para dentro, e Mirtus, vendo meus olhos marejados, disse:
“Certa ocasião, você me falou que não poderíamos viver aos 34 anos, como vivíamos aos 14”.
“Muito menos aos 70 – respondi – É o que quer dizer, não?... Pois então diga com estas palavras. Não utilize metáforas para me atingir, por favor. Seja duro, sim? E realista, como eu. Isso nos poupa tempo”.
“Tempo? Por que haveríamos de preservar o pouco tempo que ainda temos?”.
“Se você se dá por satisfeito, meu bom amigo, meta uma bala na cabeça. E o faça logo. Não espere ficar canceroso ou esclerosado para fazê-lo”. – respondi.
“Ocorre que não me dou por satisfeito”.
“Ótimo. Vá jogar futebol, então”.
“Mas o que há com você, ultimamente?”. – indagou Mirtus.
“O de sempre. Não aceito não ser mais jovem. E esteja certo: Pra quem imaginava viver 30 e poucos anos, como eu, 70 e tantos, é praticamente o dobro”.
“Então...?”.
“É detestável, simplesmente isso. E se torna ainda mais quando me olho no espelho. Ou quando pego minha agenda e vejo anotado: Segunda, consulta com Dr. Urologista; terça, com Dr. Diabetes. Lista interminável de remédios. Dietas, um horror. Não se pode comer nada”.
“Não escreve mais?”. – disse ele, tentando mudar o rumo da conversa, sua especialidade.
“Não. A literatura me abandonou. Porque sabe que nada mais eu posso oferecê-la. É uma megera, essa fulana. Uma interesseira, isto sim”.
“Por que não se dedica a um serviço voluntário, como eu?”. – ele sugeriu.
“Porque não sou hipócrita, como você”.
“Faça ginástica, então, uma vez por semana”.
Meu silêncio e meu olhar furioso lhe serviram como resposta.
“Você precisa é de um plano funerário”.
“Eu já o tenho”. – respondi.
“Muito bem. Temos aqui um rapaz sensato que planeja o seu futuro. Meus parabéns, meu jovem escritor. Daqui alguns anos, sim, você estará sofrendo de circulação, LER, enfisema, e pancreatite, talvez. Então, de fato, precisará de um bom plano de saúde. E também, um plano funerário, que permita aos seus familiares e amigos, se livrarem de você com toda a rapidez e dignidade”.
E levantou-se.
“Aonde vai?”. – indaguei.
“Estou indo embora. São pouco mais de 9 horas, e já estou intoxicado de ouvir tanta besteira. Estou farto disso”.
“Ótimo. Poupe seu tempo. Não venha mais aqui”.
“Sim, é o que farei”.
“Mande lembranças para Maxwell (era o seu pastor alemão)”.
E ele, ainda que de costas para mim, fez o seu habitual gesto com o dedo médio.
Esperei que Mirtus fosse realmente embora, e também me levantei.
Passei todo aquele dia trancado no meu quarto, às escuras, deitado na cama ouvindo Chopin, Mahler, Morricone, Debussy e Tchaicowsky. Não conseguiria ouvir Mozart.
Por volta de 6 da tarde, a dedicada Consuelo veio avisar-me que a mesa do jantar estava posta. Agradeci, e disse que logo iria. Mas não fui. Passei o resto daquela noite sem comer, sem beber, sem sair do quarto. Sem dizer uma única palavra. E me senti feliz por isso.
Queria que o silêncio me consumisse. Acreditava que poderia mesmo fazê-lo. Mas logo percebi que, ao contrário do que eu desejava, estava mais vivo do que nunca. Então, apanhei o telefone e disquei um número.
“Hei, gatinha, que tal darmos uma volta?”.
“Eu adoraria”. – respondeu Carmem, do outro lado da linha.
(Conto integrante da Antologia de 2005 – Prêmio Literário Nacional João Simões Lopes Neto – EDUCAT – Editora da Universidade Católica de Pelotas/RS)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

FINISH MIND


Você reconhece que é um medíocre, quando percebe que o melhor que tem a fazer é esperar que o tempo passe.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008